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TANCREDO NEVES fala de GETÚLIO e JUSCELINO


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"Tancredo  fala de Getúlio"
Valentina da Rocha LIMA  e  Plinio Abreu RAMOS.
São Paulo, L & PM Editores, 1968.
Programa de História Oral - Cpdoc-FGV


Trechos escolhidos do depoimento :



O pensamento político do RS, sobretudo na era republicana, foi muito marcado pelo  positivismo, como em nenhuma outra região do Brasil.
Os políticos do RS eram aqueles que tinham realmente o que hoje nós chamamos de uma concepção ideológica.

É interessante notar que em  JULIO DE CASTILHOS o RS encontrou uma liderança carismática, não apenas por seu vigor intelectual, pela força de suas convicções, mas por aquilo que ele conseguia conciliar perfeitamente bem : as suas convicções e o seu comportamento político.
CASTILHOS criou uma escola ;
criou uma equipe de homens públicos perfeitamente afinada com a sua doutrina e com os seus princípios.

Logo em seguida a CASTILHOS,
surgiu a personalidade singular de  BORGES DE MEDEIROS,
a personalidade consular de  PINHEIRO MACHADO,
por último temos  GETÚLIO VARGAS e,
de maneira mais diluída, mais afetada pelas influencias do mundo moderno, o próprio  JOÃO GOULART.

Essas 4 figuras decorrem por sucessão intelectual e ideológica de uma mesma matriz, que foi  JÚLIO DE CASTILHOS.



Em contraste com essa corrente, marcada pelo autoritarismo político e pela crença absoluta na força do poder, no poder como força criadora, formada por homens de uma probidade e honestidade apostolar, existiu simultaneamente no RS uma cordilheira de valores de uma escola liberal :
a escola de  SILVEIRA MARTINS,
a do  ASSIS BRASIL,
a do  RAUL PILLA,
que encontra mais recentemente no  PAULO BROSSARD sua expressão mais cintilante. (...)






VARGAS
era um vocacionado para o poder, e isso em razão da sua própria orientação filosófica.
VARGAS
é marcado pelo positivismo, sobretudo pelo castilhismo.
Ele tinha aquela polarização irresistível para o poder.
O poder como um instrumento de realizações em benefício do que chamaremos hoje de  'justiça social'.  Isto é, como instrumento de emancipação de segmentos sociais marginalizados e oprimidos. (...)
O poder como força super-humana ou de complementação das deficiências humanas para realizar grandes objetivos de ordem política e social.
Ele via no poder a única forma capaz de lhe permitir exteriorizar as suas concepções de ação política. (...)


Fazia política com requinte de estadista e de artista.
Há na obra de VARGAS não apenas uma grande concepção de um artista genial, mas o trabalho de um artista paciente, inteiramente voltado às suas concepções, dando sempre um retoque na sua obra-prima.

O estadista que não possuir paciência e humildade como possuía  VARGAS não será um homem público completo, nem um estadista completo.


GETÚLIO VARGAS  tinha algumas constâncias em seu pensamento.
Uma delas era a unidade nacional.
O espírito antifederalista de VARGAS  é muito curioso, porque ele via na federação muito mais um instrumento de desagregação do que de união.
Ele foi um centralizador por excelência, com o objetivo de manter o Brasil cada vez mais forte e mais unido.
Criou dentro do seu espírito unitário a concepção de construir uma nação, um grande povo, uma grande potência, e essas idéias o acompanharam em todos os momentos da sua existência. (...)



No segundo governo ele já encontrou muitos obstáculos na Constituição.
Porque a Constituição era descentralizadora.
O segundo governo foi marcado pelo desencadear de forças reacionárias pela política progressista de  VARGAS.
Ele era um grande coordenador dentro da concepção de um Estado que não tinha nenhuma semelhança com o Estado com o qual ele se havia identificado.
Encontrou instrumentos operacionais completamente díspares daqueles que estava habituado a manipular.
Daí o seu grande desajustamento com as instituições do segundo governo.
Até a sua morte, ele foi o mais democrata dos presidentes da República. (...)



O regime democrata é por sua natureza um regime de estímulos e de incentivos ao governante.
É um desafio ao cotidiano, muito mais excitante da obra governamental, do que o regime autoritário ou ditatorial.
No segundo governo, pela primeira vez num regime democrático,  VARGAS teve pela frente um projeto de desenvolvimento econômico a ser cumprido e realizado.
E isso coincidiu com as doutrinas da época, que já faziam parte do governo uma ação planejada :
começou com  DUTRA no  Plano SALTE e até o destruiu para fazer um novo programa de ação governamental, por considerá-lo mesquinho demais para as suas metas de governo. (...)



A prudência, a moderação, a tranquilidade de espírito, a maneira simples de encaminhar os problemas :  VARGAS  tinha muita coisa do político clássico mineiro.
Agora, na mentalidade, na ação, ele nunca deixou de ser gaúcho.
Na ação firme, impetuosa, segura.
Quando desencadeava um processo, ia até o fim.


A partir de 53, os discursos de Vargas eram de denúncia e de apelo.
Ele denunciava e pelas denúncias pedia o apoio das forças populares.
Ele sabia realmente que para algumas ações políticas não teria o apoio do Congresso, nem das forças militares.
Daí a razão porque os discursos dele terem sempre essa conclamação a um apoio direto do povo a ele.
Se ele tivesse feito concessões Às forças reacionárias, às forças conservadoras, teria governado até o fim.
Mas entre isso e as suas convicções, o que ele estava certo de que era o interesse do Brasil, ele fez a segunda opção. (...)


A crise foi provocada por uma conjuntura que a própria política alimentada e executada por  VARGAS  alimentou.

A política do salário mínimo foi realmente um fatos importante, porque somou todo o empresariado, todo o patronato nacional contra o governo.

Logo depois veio a política da remessa de lucros, que jogou contra o governo as multinacionais.
A nacional somou-se toda contra VARGAS.

Tem-se assim um somatório de ocorrências que geraram realmente um clima nacional que foi alimentado pela própria imprensa, sobretudo o rádio e a televisão.
E é importante que se observe isso : a televisão se implantou no Brasil no governo VARGAS.
Ninguém sabia que ela tinha a força de gerar e deflagrar emoções como ela mais tarde veio a nos revelar.
CARLOS LACERDA tinha vindo dos EUA, onde vira a força da televisão e foi o primeiro que chegou aqui com essa consciência política do que seria a televisão usada de maneira abusiva.
E aqui, todo programa de televisão era retransmitido via rádio. (...)




Em 5 de agosto a crise deixou de ser uma crise política e passou a ser militar.
Aí nós encontramos algumas  semelhanças com todos os projetos que a  CIA  adotou na América do Sul em face dos governos que ela desejava combater.
Você vê, no Chile foi o assassinato  de  SCHNEIDER  que antecedeu a queda de  ALLENDE.
Aqui pegaram o Major VAZ.
Quer dizer : era preciso ajuntar ao quadro o ingrediente emocional.
E o ingrediente emocional só se atinge com um cadáver. (...)



O problema do suicídio ...
Até a última hora, a impressão que  VARGAS  nos dava, a nós que conversávamos com ele, era do espírito de resistência.
É verdade que ele já estava com a carta pronta.
Mas quando hoje a gente lê a carta, percebe que ela era tanto para justificar uma resistência ou um gesto de bravura.
Toda a nossa conversa pouco antes da última reunião ministerial, era uma conversa de resistência.

É um fenômeno curioso.
Ele não foi para a reunião com o espírito do suicídio.
A idéia do suicídio se implantou nele depois da reunião.
Foi a decepção que os ministros militares lhe causaram.
Sobretudo isso, e o balanço que fez da reunião.
Ele já era um homem acuado.  (...)

Você sabe que a presidência em si mesmo isola.
Num governo em crise e caminhando para o fim do mandato, a solidão se agrava.




Dizem que a camisa ensanguentada de  LINCOLN fez sete presidentes nos Estados Unidos.
O suicídio  de VARGAS fez fatalmente
o  JUSCELINO,
o  JANGO e
o  próprio  JÂNIO.
O  JÂNIO  fez uma campanha getulista e explorou o  GETÚLIO como ninguém.
Nisso ele teve muita sensibilidade política.




Agora, que o governo do  JUSCELINO  é uma continuação do governo de  VARGAS, não tem a menor dúvida.
É verdade que  VARGAS  sempre esteve muito preocupado com o social do que com o desenvolvimento econômico.
Mas o desenvolvimentismo não teria sido possível se  VARGAS  não tivesse preparado as bases, os alicerces que o possibilitassem.
Por exemplo : a mudança da capital.
Se o presidente não tivesse fixado o local da capital, o  JUSCELINO  ia levar o governo todo só para escolher o lugar.
Quando  JUSCELINO chega e vê  Brasília fixada num decreto, e um decreto que não veio por acaso, veio como resultante de diversas comissões que trabalharam no estudo da localização, ele encontra meio caminho andado.



Foi possível a  JUSCELINO dar um grande impulso à eletrificação porque ele encontrou as bases preliminares.
Siderurgia :  porque já existia  Volta Redonda.
Como foi possível um desenvolvimento ordenado ?
Porque havia um  Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico, que  VARGAS  implantou e foi realmente a grande espinha dorsal do processo desenvolvimentista do  JUSCELINO.


GETÚLIO fez as bases do desenvolvimento econômico, mas muito preocupado com o social.
Deu mais ênfase ao social, sem ter abandonado o desenvolvimento, tanto que implantou os alicerces.
JUSCELINO  veio muito mais preocupado com o desenvolvimento econômico do que com o social.


GETÚLIO  era um anti-inflacionista, tinha medo da inflação.
Já o JUSCELINO era um inflacionista convicto.
Participava de uma emissão com volúpia.
Precisava de uma emissão para construir uma barragem, para construir uma central elétrica ou uma grande estrada, aquilo para ele era um banquete.
Não obstante, deixou uma inflação de 25 %, que não é nada comparada com essa de hoje.
Mas com aquela inflação de 20 % ele realmente fez os  "50 Anos em 5". (...)



Eles eram totalmente diversos.
Essa preocupação com o social existia no  JUSCELINO, mas não era uma idéia tão obcessiva como em  VARGAS.
VARGAS  sofria fisicamente o sofrimento do trabalhador.
Ele levava a sua solidariedade ao assalariado a ponto de se identificar com ele. (...)


Acho que o  JUSCELINO  nunca foi um populista no sentido exato que nós aplicamos a palavra.
GETÚLIO  foi talvez o maior líder da renovação social no Brasil, mas não era um homem de fazer adulação ou concessões públicas aos trabalhadores.
Ele os tratava com muito respeito, mas os atendia nas suas reivindicações quando justas e no essencial.



O populismo no Brasil foi, realmente, uma deformação do getulismo, foi  ADEMAR DE BARROS, foi  PORFÍRIO DA PAZ,  o próprio  JÂNIO   - que deformaram o getulismo.
O populismo foi uma caricatura do getulismo.
O populismo era adulação, a submissão ao que havia de mais negativo nos sentimentos das massas.
Era servir-se da massa e não servir à massa.
É a manipulação da massa no que ela tem de negativo, é o aliciamento da massa a serviço de um agrupamento político ou de um chefe.  (...)




Hoje você verifica que, consciente ou inconscientemente, todos os governos realizam a política do GETÚLIO.
Os próprios governos revolucionários, no que eles têm de positivo, ainda são de inspiração getulista.
O desenvolvimento das telecomunicações, a ampliação dos projetos da  Petrobrás, a ampliação dos programas da Eletrobrás, tudo isso é parte de GETÚLIO.


Acho que o suicídio teve como consequência a eleição do  JUSCELINO.
Mas o suicídio também adiou 64.
Se não fosse o suicídio de  VARGAS, 54 já teria sido 64.
Você verifica :   as lideranças de 64 são as mesmas de 54, com os mesmos objetivos.
64 foi uma revolução de direita, uma revolução conservadora, nitidamente pró-americana, feita inclusive com a participação deles, americanos, que já tinham participado em 54.
Este é o aspecto mais importante do suicídio.
o  JÂNIO, em 61, foi na verdade um cripto-64 ; teve uma cobertura enorme de todos os elementos que fizeram 64.
Quando foi da sua renúncia, se não é o movimento do  BRIZOLA, eles já teriam nessa oportunidade implantado 64.
Foi a resistência pela legalidade democrática, comandada pelo  BRIZOLA que conseguiu empolgar a nação, criou um clima de opinião pública e mobilizou. (...)



O GETÚLIO  é singular dentro do quadro político brasileiro.
Não tem nenhum que se aproxime dele,
não só na estatura,
no valor,
na visão,
na clarividência,
como também no comportamento cívico,
na dignidade com que exerceu o poder.

Ele tinha uma noção de autoridade como em pouca gente eu vi.
Nunca vi ninguém chegar perto do Dr. GETÚLIO e se permitir uma certa intimidade.
Mesmo a  ALZIRA, que era a mais querida de todas as criaturas do seu coração, ela chegava, beijava, abraçava, mas se colocava imediatamente numa posição de respeito.
Ele infundia, inspirava, transmitia um sentimento de autoridade.

Nunca vi ninguém que tivesse tanto sentido de poder,
da dignidade do poder,
da autoridade do poder.
E não o fazia na base da imposição, não o fazia na base da arrogância, da prepotência.
Aquilo vinha naturalmente dele.

Ele é muitas vezes mal interpretado pelas suas contradições aparentes.
Essas contradições são meramente processos que ele adotava para atingir seus objetivos.
Ele é perfeitamente coerente do começo da sua vida pública até o último dia da sua existência na busca perseverante, tenaz e constante dos seus objetivos centrais.
Tinha muitas vezes que coonestar situações chocantes e contraditórias.



Ele teve a preocupação de fortalecer a integração nacional  -  um pensamento constante na sua obra.
Segundo, a preocupação em aprimorar as instituições políticas.
Terceiro, a preocupação com o desenvolvimento econômico.
Quarto, o grande impulso que ele deu à política social no Brasil, à emancipação social do trabalhador brasileiro. 

Esses objetivos, nortearam sua existência.







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